O General e o Ovo da Serpente

O General e o Ovo da Serpente


No Brasil, até a História tem um leve cheiro de queimado, como se nosso destino fosse sempre sair da frigideira direto para o fogo. E hoje, neste dia de dezembro em que as sirenes tocaram e a sombra da democracia brasileira pareceu respirar um pouco mais aliviada, não há espaço para celebração. A prisão de um general quatro estrelas, acusado de arquitetar um golpe contra a República, é um daqueles eventos que fariam até o mais cínico dos cronistas mergulhar na tragédia e no absurdo.


Porque, sejamos francos, o golpe não é novidade. O ovo da serpente, aquele que Ingmar Bergman nos mostrou e que já se chocou tantas vezes na história deste país, ainda está aí, quentinho, envolto na colcha de retalhos do bolsonarismo. Uma legião de crentes no impossível e no improvável: comunistas em cada esquina, inimigos em cada discurso, e um país que nunca é país, mas sempre trincheira.


E o general Braga Netto, um homem que deveria ser um guardião do Estado, não passava de mais um incendiário fantasiado de bombeiro. Um homem que, diante de um farto conjunto de provas, não resistiu ao destino dos vilões de opereta: foi preso. Planejava um golpe que não saiu do papel porque, veja você, ainda existem homens honrados entre as Forças Armadas. E se a honra hoje tem um rosto, é o do general Freire Gomes, um nome que talvez um dia conste nos rodapés da nossa História, mas que hoje deveria estar em letras garrafais.


É irônico, quase poético, que o tal golpe tenha fracassado num país onde o golpe é mais rotina que escândalo. Desde 1889, quando marechais decidiram trocar a coroa por casacas, passamos a conviver com o fantasma de uma democracia que nunca parece estar completamente viva, mas que também não morre de vez.


E no entanto, o que mais espanta não é a tentativa do golpe, mas os ecos que ele encontra. São militares aposentados, armamentistas nostálgicos, agroempresários que sonham com campos sem fiscais, e evangélicos que enxergam comunismo até no arroz com feijão. É uma colcha de retalhos costurada à base do delírio, mas que ainda consegue envolver uma parcela considerável da população.


“Não podemos nos omitir, pois afinal estamos vivendo isso.” A frase de Baby Bocayuva no filme Ainda Estou Aqui ecoa como um mantra nesta triste data. Não há neutralidade possível diante da serpente. Não há espaço para observadores imparciais quando o ovo está rachando no quintal.


Mas o Brasil é mestre em ambivalências. A prisão de Braga Netto é, ao mesmo tempo, um marco histórico e uma triste constatação de que o golpe nunca é apenas uma possibilidade distante. É uma realidade que espreita, como um urubu sobrevoando a carcaça da nossa jovem democracia.


E enquanto o país tenta entender o que isso significa, há quem ainda tente justificar o injustificável. O ovo da serpente não é apenas político; é cultural. Ele cresce nas conversas de bar, nas redes sociais, nos púlpitos e nas salas de estar. Ele se alimenta da desinformação e do medo, da nostalgia de um tempo que nunca existiu.


Hoje, Braga Netto está preso. Mas o ovo da serpente ainda não foi esmagado. E, como diria Nelson Rodrigues, não há nada mais brasileiro do que assistir a um espetáculo de tragédia e se perguntar, com um sorriso cínico, qual será o próximo ato.


Nello Morlotti

(bebe Toddy todos os dias)


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