O Finado que Não Morreu
Lembro como se fosse ontem: minha temporada no jornalismo policial, quando a notícia tinha cheiro de pólvora e a pauta começava no necrotério. Todas as manhãs, lá estava eu, em busca do submundo da vida, porque o jornalismo sempre teve um pacto meio mórbido com a verdade. Meu parceiro na empreitada era Algaci Tulio, uma lenda que alternava entre o microfone e a política como quem troca de chapéu. Prefeito, deputado, apresentador – parecia que ele já tinha vivido sete vidas antes mesmo de começar o programa.
No ar, tínhamos uma sessão especial para os finados. Era uma mistura de “A Voz do Brasil” com o Livro dos Espíritos. A vinheta entrava solene, quase macabra, e a voz empostada do Algaci surgia anunciando os desencarnados com a mesma gravidade de quem leu o orçamento da União. E os ouvintes? Paravam tudo. Imagino cenas dignas de cinema: gente desligando o fogão, crianças calando na sala, o cachorro deitando na varanda, só para ouvir quem tinha “partido desta para melhor”.
Confesso que essa mania me pegou. Não havia jornal que eu abrisse sem correr direto para o obituário. A idade dos falecidos era o que mais me afetava. Gente mais jovem que eu, na flor da idade? Sofria mais pela matemática do que pela causa. E, na pandemia, o hábito virou quase um esporte radical. Foram tantas partidas que a coluna de óbitos parecia a seção de classificados. Mas, às vezes, a pressa em anunciar o fim de alguém virava comédia. Foi o caso do ex-presidente da Itaipu, Jorge Samek.
Um dia, um colega jornalista – daqueles com faro aguçado e dedos rápidos – recebeu a “notícia” do falecimento de Samek. Fez as checagens (ou achou que fez), conferiu fontes (talvez do além) e, crente na sua apuração, publicou no blog: “Jorge Samek morreu.” Mas Samek, em um ato de absoluta má educação para com o protocolo fúnebre, estava vivo. Vivíssimo! Nada de ressuscitar – ele sequer tinha morrido.
Quando a verdade veio à tona, a cidade se dividiu entre os que lamentaram pela morte que não aconteceu e os que riram do milagre que ninguém esperava. Samek, claro, deu risada. E, cá entre nós, como culpar o jornalista? Naquela época, até abrir o obituário era uma loteria. O que me consola é que o morto-que-não-morreu ganhou mais tempo de vida, e o colega jornalista aprendeu uma valiosa lição: só enterre quem tiver uma certidão de óbito bem assinada.
No fim, essas histórias me lembram como o jornalismo é – ora trágico, ora cômico. No meu caso, aprendi que, às vezes, a melhor pauta está no erro. Ou no obituário, mas só quando o nome da gente não aparece lá por engano.
Nello Morlotti
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