*O Sabor das Madrugadas*
Há sabores que não morrem. Não importa o quanto o tempo tente apagar, eles ficam ali, adormecidos em alguma dobra da memória, esperando o momento certo para acordar. E, quando despertam, não trazem só o gosto — trazem vozes, cheiros, e um abraço que já não se pode dar, mas que ainda aperta forte por dentro.
Lembro-me bem das madrugadas em que meu pai chegava com aquele prato de costela borboleta do Botafogo. O relógio já nem fazia questão de avisar as horas, e a casa, silenciosa, dormia em paz. Mas bastava o barulho suave da porta se abrindo e o cheiro inconfundível invadindo a sala, que a mágica começava.
Antes mesmo de abrir os olhos, eu já ouvia as vozes da Odete e da Carla sussurrando, cheias de entusiasmo contido, como se carregassem um segredo precioso:
— “O pai trouxe coisa boa!”
Era mais do que um prato de comida. Era um gesto, um carinho noturno disfarçado de costela suculenta. Acordávamos sonolentos, rindo de nada e de tudo, e devorávamos cada pedaço como se estivéssemos em um banquete secreto, compartilhando mais do que carne e molho — compartilhando um momento que, sem sabermos, ficaria pra sempre.
Mas se a costela era um convite à felicidade noturna, o sanduíche de pernil do Bar Triângulo, na Rua XV de Curitiba, era um verdadeiro troféu de fim de dia.
O pão d’água, macio e honesto, abraçava o pernil cortado na medida certa, coberto por um punhado generoso de cheiro-verde fresco e uma dose caprichada de mostarda preta. A cada mordida, parecia que Curitiba se tornava o centro do universo — e a cozinha da nossa casa, o lugar mais acolhedor do mundo.
Meu pai trazia aquele sanduíche com o mesmo orgulho de quem oferece um presente raro. E, no fundo, era isso: um prêmio por estarmos juntos, por cada dia vivido, por cada pequeno detalhe que fazia daquela cozinha o coração pulsante da casa.
Hoje, a costela e o pernil não estão mais no prato — mas permanecem na alma. Estão no som da risada da Odete, no olhar cúmplice da Carla, no cheiro da noite fria de Curitiba e no calor de uma lembrança que, vez ou outra, ainda acorda de madrugada, faminta por um tempo que não volta mais.
Mas, no fundo, não é só sobre comida. É sobre aqueles pequenos gestos que dizem, silenciosamente: “Eu te amo” — sem precisar de uma palavra. E talvez seja por isso que, até hoje, quando o cheiro de pernil ou costela invade algum canto da cidade, eu não resisto a sorrir.
Porque, no fundo, a saudade também tem gosto. E o meu… ah, tem cheiro de madrugada, pão d’água e um abraço que nunca esfria.
Nello Morlotti
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