Tortura é o que não me convém
Não sei se você já ouviu falar de um sujeito chamado Barão de Itararé. Ele dizia: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada.” E eu, cá comigo, olhando a performance do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro no podcast Inteligência Ltda. (ah, a ironia dos nomes!), não posso deixar de pensar: de um fã declarado de torturadores, saiu o quê? Um queixume sobre tortura.
Bolsonaro, que outrora desfilava com ares orgulhosos ao lado da memória do coronel Carlos Brilhante Ustra — aquele cujo currículo é assinado com choque elétrico, pau-de-arara e outros métodos “convencionais” — agora clama pelos direitos humanos de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens. Segundo ele, a delação do tenente-coronel foi obtida “sob tortura”. E não me venha dizer que é metáfora: ele usou o termo assim, cru, seco, sem um pingo de vergonha.
Ah, o mundo gira e o disco arranha. O herói de 64, vestido de verde-oliva e armado de porrete ideológico, agora se ofende com palavras duras e acusações pesadas. Quem glorificava choques no Planalto agora reclama de pressões no STF. O homem que dizia que “o erro da ditadura foi torturar e não matar” agora se diz vítima de uma distorção jurídica digna de Stalin. E, de quebra, tenta transformar um processo legal em novela das nove, com direito a vilão caricato (Alexandre de Moraes), mártir inocente (ele próprio, é claro) e coadjuvantes leais (Tarcísio e Eduardo, seu filho e porta-voz, que aliás parece ter saído direto de House of Cards versão caricata).
É como se Jack, de O Iluminado, reclamasse do frio na espinha. Como se Al Capone fosse à delegacia protestar contra a truculência policial. Como se o açougueiro protestasse contra o cheiro de sangue.
Cá entre nós: Bolsonaro reclamar de tortura é um monumento à ironia, desses que a História adora esculpir para nos humilhar. Um busto em bronze do autoengano, para ser colocado bem no meio da Praça dos Trapalhões.
E enquanto ele acusa, esperneia, se diz perseguido, me ocorre que o maior algoz de Jair Bolsonaro talvez seja o espelho. Porque não há tortura maior do que ser confrontado pelo próprio passado — e não poder deletar nem com ajuda do filho influenciador, do governador fiel ou do advogado de plantão.
No fim das contas, não há delação que torture mais do que a consciência. E essa, por mais blindada que esteja, sempre escapa em algum suspiro nervoso, em algum olhar que baixa, em algum silêncio que pesa.
Nello Morlotti
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