Os sotaques da Vassoura !

“Não Varrerás o Meu Pé”

Tem coisa que a gente desaprende, e tem coisa que a gente desaprende tentando — mas não consegue. Tipo essa mania besta de puxar o pé pra trás toda vez que uma vassoura se aproxima, mesmo que seja só uma faxineira querendo deixar o salão limpinho pra hora do almoço.


Aqui no Nordeste, onde padaria vira centro cultural e café de beira de estrada tem mais alma que muito restaurante chique, já perdi a conta das vezes que precisei mudar de mesa. Às vezes, tô lá com meu pão na chapa, suco de umbu gelado, lendo o jornal do dia (quando tem), e lá vem ela: dona Maria, ou dona Zefinha, com sua vassoura de palha e um olhar de quem já viu de tudo.


— Licença, moço.

— Claro, só não passa no meu pé, pelo amor de Deus.


E eu puxo o pé. Troco de cadeira. Deixo a cadeira torta. Mudo de mesa, às vezes até de humor. Porque minha mãe dizia que se varressem meu pé, eu não casava.

E olha que minha mãe nem era nordestina. Mas bastou pisar nessas terras pra virar crente de certas coisas.


E eu? Eu nem sei mais se quero casar. Mas vai que… né?

Vai que o destino, esse funcionário público relapso, resolve cumprir a profecia só pra mostrar serviço.


Não é que eu acredite. É que minha mãe acreditava. E quando uma mãe acredita numa coisa, é melhor obedecer do que pagar pra ver.

Ela, que fazia promessa pra Santo Antônio, escondia as alianças do casal em copo com água e jurava que vassoura virada atrás da porta espantava visita indesejada.

(Confesso que essa última eu testei, e funciona mesmo — sumiram uns primos que só apareciam pra comer farofa.)


Mas o pé, ah, o pé é sagrado. Um homem pode até andar descalço no terreiro, mas se alguém varrer o pé dele… o universo anota.


Esses dias, num hotelzinho em Presidente Dutra, sentei pra tomar um café da manhã demorado, desses que só acontecem quando a gente tá fugindo da vida. Tapioca, cuscuz com queijo coalho, café preto fumegante, o paraíso no prato. E lá vinha ela de novo, com a vassoura.

Pensei: não vou ceder dessa vez. Não vou puxar o pé. Já tô grandinho.

Mas bastou a palha roçar a beirada do meu chinelo pra eu dar um salto ninja digno de campeonato de karatê. A mulher me olhou assustada, o garçom riu, e eu fui pra outra mesa, murmurando baixinho:

— Mamãe, essa é por você.


Tem gente que carrega medalhinha no pescoço. Eu carrego a vassoura na memória.

E sigo varrendo a vida com cuidado — mas nunca o pé.


Nello Morlotti



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