O Borscht da Concórdia
Dizem que a guerra começa quando os homens param de conversar. Talvez comece também quando param de comer juntos.
Era uma vez uma sopa. Vermelha, quente, espessa. Cheia de beterrabas, memórias e rancores.
Chamava-se borscht, e por séculos foi servida em casas russas, ucranianas, polonesas, judias — às vezes com carne, às vezes com vinagre, quase sempre com uma colherada de silêncio no fundo do prato.
A sopa era uma daquelas coisas que ninguém sabe ao certo quem inventou — como o pão, o beijo ou a saudade. Ela brotava da terra e da fome, das avós e dos invernos longos. Era comida de camponês, remédio de mãe, e bandeira de ninguém. Ou de todos.
Mas, como tudo que se torna precioso demais, o borscht virou campo de batalha.
Em 2022, no auge da guerra entre Rússia e Ucrânia, a UNESCO — talvez entediada com ruínas gregas e danças bérberes — decidiu que o borscht era exclusivamente ucraniano. Uma decisão carregada de beterraba e boa intenção.
Pronto. A sopa foi promovida a símbolo nacional. Ganhou passaporte diplomático. Virou trincheira cultural.
E o que antes unia — o cheiro da panela borbulhante que atravessava fronteiras e histórias — virou mais um ponto de discórdia.
Imagine, caro leitor, se a Itália resolvesse registrar o macarrão como patrimônio anti-chinês. Ou se a França dissesse que o croissant não pode mais ser feito em Viena. Ou se a Bahia entrasse com recurso contra o acarajé paulista. A gastronomia não conhece fronteiras: ela fermenta onde há fogão e saudade.
O borscht não é uma arma. É uma sopa.
Mas, talvez, hoje ela seja mais potente que mísseis, drones ou resoluções da ONU.
Porque o borscht — como o perdão — não se impõe por decreto. Ele se oferece. Se reparte.
Talvez a paz comece, então, não por tratados ou sanções, mas por uma colher estendida. Por um russo e um ucraniano sentados à mesa, discutindo se o repolho entra antes ou depois da batata. E descobrindo que a diferença não importa tanto quanto o gesto de servir.
Nota ao leitor gourmet e geopolítico:
A próxima vez que vir um prato de borscht à sua frente, não pergunte de onde ele veio.
Pergunte com quem você pode dividi-lo.
— Nello Morlotti
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