O Quarto de Despejo do Mundo
Nesta minha fase de recuperação da saúde, entre comprimidos, caminhadas curtas e goles de água morna com limão, me peguei lendo Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. A cada página, um tapa de realidade. A cada anotação dela num caderno velho, um espelho — ainda que rachado — do país que insiste em repetir a fome, a miséria e a fé como anestesia coletiva.
O que mais me marcou, confesso, foi a devoção ao divino. Carolina, mesmo com o estômago vazio e os filhos chorando de frio, dizia: “Deus há de prover”. E ali entendi uma coisa: no Brasil, desde sempre, Deus é o fiador universal da esperança. Se não há pão, há oração. Se não há justiça, há missa. Se não há casa, há promessas de céu. Delegamos a Ele nossos designíos, como se fosse CEO de uma multinacional do milagre.
Essa devoção resignada — bonita, sim, mas também cruel — parece ter contaminado o mundo todo. Hoje, assistimos à guerra incentivada pelo presidente dos Estados Unidos, aquele que finge rezar antes de bombardear. Um velho de terno e bengala nuclear, que empurra Israel para o abismo, como se ali não vivessem crianças, mães, estudantes, pedreiros, poetas. E os mortos, de novo, são entregues a Deus. Como se o Altíssimo tivesse sido convocado a chefiar exércitos e assinar decretos de ocupação.
É curioso como os que têm poder usam Deus como escudo. E os que não têm, como muleta. Uns dizem que Deus está com eles enquanto disparam drones. Outros rezam para que o míssil erre o telhado.
Carolina, lá no seu barraco de papelão e coragem, já sabia disso. Ela escrevia que a política era suja, mas Deus era limpo. E talvez, pensando bem, essa fé dela seja a verdadeira resistência. Porque, mesmo largada num quarto de despejo, ela ainda escrevia. Ainda sonhava. Ainda acreditava.
E hoje, tantos anos depois, me pergunto: quem está escrevendo o Quarto de Despejo da guerra? Quem é a Carolina de Gaza? Quem anotará em folhas velhas que ali havia vida antes das bombas? Que havia pão, antes da pólvora?
Talvez devêssemos todos parar de terceirizar tanto a Deus. Talvez o milagre que esperamos precise começar com um gesto simples: levantar, escrever, resistir. Como Carolina fez. Como tantos não conseguem mais fazer.
Nello Morlotti
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