A Doce Crimeia !

 “Na ponte entre dois mundos”

Estive na Crimeia. E isso, por si só, já é uma frase carregada de sentidos, suspeitas e silêncios. Estive onde as placas dizem Rússia, mas o mundo insiste em chamar de Ucrânia. Onde o espaço aéreo está fechado e o mar, vigiado. Mas onde as pessoas — ah, as pessoas — continuam abrindo sorrisos, servindo chá forte e contando histórias como se o mundo lá fora fosse só um boato.


Atravessar a Ponte da Crimeia, aquela que cruza o Estreito de Kerch ligando a península ao continente russo, é como cruzar uma fronteira invisível entre o que dizem e o que é. De um lado, a geopolítica. Do outro, a geografia da alma de um povo que decidiu continuar vivendo, mesmo quando o resto do planeta insiste em interromper.


Evpatória, com suas praias largas e areia fina, parecia um lugar improvável para férias — e ali estava eu. À noite, o cinema projetado sobre a areia, como um sonho soviético com sabor de pipoca e sal do mar. Crianças corriam, casais se abraçavam, e a guerra — tão próxima — parecia adormecida ali, ao som de uma trilha sonora antiga em russo.


Em Balaclava, desci até a enseada onde, dizem, submarinos nucleares russos recebem carinho — não bombas. É um lugar que soa como uma palavra inventada por Homero, mas onde os ecos não são mitológicos, e sim bélicos. A água é tão azul quanto inquieta, e o silêncio ali é mais eloquente do que qualquer discurso da ONU.


O povo tártaro da Crimeia me ensinou que resistência também é um modo de servir chá, de fazer pão com carne de urso, de pintar os azulejos com histórias milenares. Levei um ímã de geladeira como lembrança, mas o que está grudado mesmo em mim é outra coisa: a impressão de que ali o tempo corre diferente, mais profundo, mais feroz — mas também mais livre.


Porque há um tipo de liberdade que o Ocidente não entende. Uma liberdade que não está nas vitrines nem nos trending topics, mas no orgulho com que alguém diz: “aqui, a gente não depende de ninguém.”


E quando penso na Crimeia agora, do lado de cá, o que mais me surpreende não é a guerra. É o amor. Aquele com que os moradores cuidam do que é deles, mesmo quando todos os outros querem dizer o contrário.


Nello Morlotti 


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