📜 Bobbio em BrasÃlia
( Crônica imaginária de Norberto Bobbio sobre o Brasil contemporâneo)
Acordei hoje com uma inquietação rara — dessas que não se explicam nem com Nietzsche, nem com Kelsen. Sonhei que estava em BrasÃlia, de toga imaginária, assistindo a um julgamento em que o réu era a própria razão.
O Brasil é um paÃs que tem o dom de subverter até mesmo os axiomas do Iluminismo. Ali, o contraditório não é apenas princÃpio jurÃdico — é método de governo.
Vejo um ex-presidente que flerta com a mitologia romana, mas age como um vândalo galo: Bolsonaro, o Catilina de chinelo Rider, passou quatro anos em guerra com as instituições e agora, com seus filhos em volta como centuriões desajeitados, tenta evitar que a História o inscreva na lápide dos que tentaram matar a República antes do amanhecer.
Mas o curioso — e talvez trágico — é que a democracia brasileira sobreviveu, não porque triunfou, mas porque se defendeu com um vigor quase barroco. Em Roma, haveria um Júlio César; no Brasil, há Alexandre de Moraes, uma espécie de cônsul togado que, entre habeas corpus e inquéritos inusitados, virou o centurião da Constituição. Há quem o veja como herói; outros, como censor. Eu, Bobbio, diria: ele é uma necessidade histórica. Quando a legalidade é invadida por camisas da Seleção, o positivismo vira resistência.
Agora, o velho Trump, aquele tribuno desbocado do norte, ameaça a pátria de Villa-Lobos com tarifas. Não por razões econômicas reais, mas por delÃrios protecionistas — como se o protecionismo mal-educado fosse sinônimo de soberania. Ironia: o Brasil que quer vender ao mundo é punido por não vender sua alma.
Em outro plano, silencioso e talvez mais estratégico, o BRICS avança como um laboratório geopolÃtico. Há nele um embrião do que chamei um dia de “ordem jurÃdica internacional não ocidental”. Mas cuidado, meus amigos: alianças só se sustentam se forem também pactos de valores, e não apenas de commodities.
Perguntar-me-iam: e a democracia brasileira?
Eu responderia: ainda vive, mas cambaleia. Seu maior inimigo não é o populismo, mas a indiferença. Quando os cidadãos se acostumam a viver sem verdade, entregam-se facilmente a qualquer mentira.
Por fim, digo algo que talvez soe presunçoso, mas carrega o peso da observação centenária:
O Brasil é, ainda, uma promessa. Mas promessas não se cumprem sozinhas. É preciso razão, coragem e um pouco de vergonha — ou, ao menos, memória.
Levantem-se, pois, os que ainda acreditam no Estado de Direito — mesmo que ele precise, Ã s vezes, de um coque careca e uma caneta pesada para se fazer ouvir.
Norberto Bobbio, em algum lugar entre Turim e o Supremo Tribunal Federal.
Nello Morlotti
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