Artigo Pec da Blindagem

A PEC da Blindagem e o preço da impunidade



Em meio ao turbilhão político que atravessa o Brasil, a chamada PEC da Blindagem surgiu como mais um golpe na já combalida confiança popular nas instituições. A proposta, aprovada com folga na Câmara e agora sob análise do Senado, estabelece que parlamentares só possam ser processados criminalmente mediante autorização de suas respectivas Casas. O detalhe adicional – a possibilidade de votação secreta – transforma o que deveria ser um instrumento de proteção democrática em uma fortaleza contra a justiça.


A justificativa oficial é antiga: proteger o mandato contra perseguições políticas. Na prática, abre-se a porta para algo mais grave — o retorno de um sistema em que deputados e senadores se tornam juízes de si mesmos, capazes de travar investigações antes mesmo que o Judiciário se pronuncie. É a velha fórmula da impunidade, agora repaginada em forma de emenda constitucional.





O que dizem outras democracias



Não se trata de ignorar que a imunidade parlamentar exista em outros países. Alemanha, Portugal, Grécia, União Europeia e até mesmo o Reino Unido possuem regimes de proteção aos seus legisladores. Mas há diferenças fundamentais:


  • Na Alemanha e em Portugal, o Parlamento precisa autorizar investigações, mas há regras claras, prazos definidos e, sobretudo, transparência pública.
  • Na União Europeia, os eurodeputados têm imunidade apenas para opiniões e votos; crimes comuns não podem ser blindados indefinidamente.
  • No Reino Unido, o privilégio é restrito ao exercício parlamentar: fora do Parlamento, o deputado é um cidadão como qualquer outro, sujeito às mesmas leis.



O contraste é evidente. Em vez de aperfeiçoar a imunidade para proteger a função legislativa, a PEC brasileira estende a blindagem até mesmo para crimes que nada têm a ver com a atividade parlamentar. É como trocar o colete de proteção por um escudo impenetrável, capaz de repelir até a lei.





O risco do voto secreto



Se já não bastasse, a PEC prevê que a decisão sobre levantar ou não a imunidade seja tomada em votação secreta. Aqui está talvez o elemento mais corrosivo: tira-se do eleitor a possibilidade de saber como seu representante se posiciona diante da ética e da legalidade. O Parlamento se transforma numa caixa-preta onde se decide quem pode e quem não pode ser processado, em negociações invisíveis ao olhar público.


É a consagração do corporativismo de bastidores, onde o cálculo político pesa mais que o compromisso com a sociedade. E nesse ambiente, a impunidade não é um acidente: é o resultado esperado.





Consequências previsíveis



Os efeitos de uma blindagem tão ampla já foram sentidos no Brasil. Entre 1988 e 2001, quando vigorava regra semelhante, centenas de pedidos de investigação foram engavetados. Não é preciso grande imaginação para prever que o filme se repetirá, agora em alta definição.


Mais grave ainda: ao colocar parlamentares acima da lei, a PEC mina o equilíbrio entre os poderes. O Legislativo deixa de ser fiscalizado e passa a ser fiscal de si mesmo, subvertendo o espírito republicano. O Judiciário perde força, o Executivo perde contrapeso, e a democracia perde credibilidade.





Um tributo invisível ao poder



Talvez a melhor forma de compreender a PEC da Blindagem seja vê-la como um tributo invisível pago pela sociedade. Não em dinheiro, mas em legitimidade e confiança. Enquanto cidadãos comuns enfrentam a lei sem privilégios, representantes eleitos criam para si um “seguro de impunidade”. É o oposto da igualdade republicana: em vez de reforçar a democracia, a enfraquece.





Conclusão



Imunidades parlamentares são necessárias — mas apenas quando delimitadas ao essencial: proteger discursos, votos e o livre exercício do mandato. Quando se expandem para cobrir crimes comuns, tornam-se um insulto à ideia de justiça. A PEC da Blindagem não é um escudo democrático; é uma muralha corporativa.


O Senado, agora diante da proposta, tem a chance de rejeitar não apenas uma emenda, mas uma visão de país onde leis valem para uns e não para outros. A história cobrará caro daqueles que escolherem a conveniência da impunidade sobre a integridade das instituições.




Nello Morlotti





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